Bolsa-Família: a fome tem pressa e não pode ser medida apenas por cifras

por De Olho no Golpe.

Jefferson Rudy/ Agência Senado / Fotos Públicas.

Jefferson Rudy/ Agência Senado / Fotos Públicas.

As políticas sociais implementadas até agora no Brasil serão mantidas! Essa é a afirmação repetida à exaustão pelo governo do presidente interino, Michel Temer, e seus ministros também interinos, uma vez que é preciso dizer que este é um governo provisório. É fácil perceber que, para cada fala presidencial referendando a afirmativa de que todas as políticas sociais serão mantidas, há uma ação exatamente no sentido contrário.

Nos discursos dos ministros de Michel Temer é possível identificar que o governo provisório parte da premissa de que os pobres não merecem as políticas sociais a eles dirigidas e ainda que essas políticas seriam prejudiciais ao seu próprio crescimento, pois os deixariam “dependentes”. Para esse governo interino, as políticas sociais não parecem melhorar a vida dos mais pobres, mas os “aprisionariam” à própria pobreza. Por esse pensamento, é a fome ou o risco dela que incentiva o trabalho. Uma ajuda, ainda que ínfima, acomodaria as pessoas, que deixariam de trabalhar e buscar melhorar suas vidas. Para esse governo de homens brancos e abastados, a fome é culpa do indivíduo que não se esforçou o suficiente para ter o que comer. Essa visão deixa explícita a total falta de empatia para com a população mais pobre e o total desconhecimento de suas dificuldades, rotinas e histórias. A triste conclusão é que o preconceito contra o pobre passa a definir as “políticas públicas” destinadas à redução da pobreza.

Façamos um histórico, então, do principal programa de distribuição de renda e combate à pobreza do Brasil: o Bolsa Família. Desde sua criação, em 2003, o programa recebe críticas a partir dessa mesma visão de que a pobreza é uma escolha. Muitos dos que hoje estão sentados em seus gabinetes ministeriais se utilizavam de expressões grosseiras para definir o Bolsa Família como uma espécie de “bolsa-vagabundo”, que garantiria um enorme “curral eleitoral” com votos destinados a políticos e governos que defendessem a sua continuidade. Os discursos vinham também de análises rasas, sem qualquer estudo comprovado, de que o programa carecia de revisão, uma vez que “estava inchado”, “mal focalizado”, precisando das chamadas “portas de saída”. O fato de estar constantemente sob ataque contribuiu para que o Bolsa Família se transformasse num dos programas mais estudados no Brasil e também em outros países mundo afora. Pesquisadores de diversos matizes ideológicos se debruçaram sobre os dados do programa para avaliar seus impactos, seus acertos e suas falhas (alguns deles foram reunidos no livro Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania).

Para se ter uma ideia, no ano de 2013, o Bolsa Família foi reconhecido pela Associação Internacional de Seguridade Social (ISSA) com o prestigiado prêmio “Award for Outstanding Achievement in Social Security”, conhecido como o prêmio Nobel das políticas sociais.1 Por essa razão, pouco esforço seria necessário pelo governo interino (muito menor que o esforço que dizem faltar aos pobres) para buscar entender o programa, seu modelo e seus resultados. Infelizmente, o entendimento de pobreza que prevalece no governo interino é opaca aos fatos e às evidências, predominando o preconceito contra os pobres a ignorância em relação às estratégias de combate à pobreza.

Merece destaque aqui neste pequeno apanhado o programa para a área social divulgado pelo partido do presidente interino Michel Temer, o PMDB. Pasmem: lá está escrito que o objetivo principal é elevar o padrão de vida apenas dos 5% mais pobres:

Preservar o bem-estar dos 40% mais pobres e, adicionalmente, elevar o padrão de vida dos 5% mais pobres – 10 milhões de pessoas – para as quais têm sido mais desafiador promover a inclusão social e produtiva.2

Um dos principais autores do documento, Ricardo Paes de Barros, deixa claro que um dos problemas do Bolsa Família é o inchaço provocado por famílias que declarariam 10 reais a menos do que de fato ganham e, com isso, burlariam o sistema e seriam beneficiárias. O estudioso ignora uma das principais características da pobreza: a insegurança e a volatilidade de sua renda3

Numa família de cinco pessoas, se você declarar que ganha R$ 10 a menos do que de fato ganha, você recebe no Bolsa Família, todo mês, R$ 50 reais a mais”

(…)

É claro que o Bolsa Família está inchado. Isso quer dizer que quero reduzir os gastos com o Bolsa Família? Não. Eu quero manter ou até aumentar.4

O estudo só permite pensar em ações que levem à redução de cifras. Há uma incapacidade, como demostrado nestes pequenos trechos que selecionamos aqui, de pensar o Programa Bolsa Família no âmbito de uma política de proteção social mais ampla e como uma estratégia de superação intergeracional da pobreza e de garantia de um valor mínimo a cada família para que tenha condições de se planejar, pensar no futuro, ter algum poder de barganha no mercado de trabalho, manter os filhos na escola.

A tarefa mais urgente, segundo essa visão, não é a ampliação do acesso a outras políticas públicas por parte da população alvo do programa, de modo a ampliar seu repertório para inserção na sociedade, fazendo aprimoramentos para reduzir erros de inclusão e de exclusão. Desconhecendo ou fingindo desconhecer toda a estrutura de monitoramento, acompanhamento e fiscalização do Programa Bolsa Família, a tarefa mais urgente eleita pelo governo interino é fazer um “pente fino” no Programa:

O ministro do Desenvolvimento Social e Agrário, Osmar Terra, afirmou em entrevista exibida na manhã desta terça-feira (17) no programa Bom Dia Rio Grande, da RBS TV, que vai realizar um pente-fino no Cadastro Único do Bolsa Família.”

(…)

Em entrevista concedida ao jornal O Globo, Terra disse que o pente-fino poderá provocar o desligamento de até 10% dos beneficiários do programa. 5

Para o ministro interino do governo provisório, o essencial é retirar famílias do programa, porque ele teria se transformado no objetivo de vida dessas famílias. Essa informação não tem nenhuma evidência empírica – apenas seu próprio pré-conceito e sua própria visão embaçada dos desafios de viver com tão poucos recursos.6

Eu acho que não deve se mexer nisso agora, mas tem de se oportunizar a saída do programa. As pessoas têm que ter renda e não pode ser objetivo de vida viver só do Bolsa Família e o que está acontecendo é isso. As pessoas estão entrando e não estão saindo. Temos que ajudar as pessoas a sair do programa.7

Quando o Ministério Público Federal divulgou à imprensa – sem dialogar com a equipe técnica do programa – que havia realizado um levantamento de dados que apontara para R$ 2,5 bilhões em pagamentos irregulares do Bolsa Família, o Ministro do Desenvolvimento Social do governo interino – também sem conversar com a área técnica – publicou uma nota em que se aproveita desse fato para reiterar seu compromisso em reduzir o programa:

O Ministério do Desenvolvimento Social não ignora a possibilidade de irregularidades ocorridas na gestão anterior. A pasta está empenhada em aperfeiçoar o controle e os mecanismos de fiscalização dos beneficiários do Bolsa Família. O MDS esteve no Tribunal de Contas da União e entrou em contato com o Ministério Público Federal para tratar do assunto. Um comitê de controle será criado para depurar e garantir que o Bolsa Família seja destinado para quem mais precisa.8

A nota ignora diversos problemas primários do levantamento feito pelo Ministério Público Federal, que já são do conhecimento da área técnica do Programa. Coube à ex-ministra Tereza Campello trazer os argumentos para a defesa do programa:

Em relação às “fraudes” identificadas pela referida auditoria, vale destacar:

  • Os casos de pessoas falecidas são tratados desde 2012 utilizando a base nacional de óbitos, o Sisobi. Mais recentemente, o cruzamento tornou rotina automatizada no sistema de pagamentos de benefícios, operado pela Caixa. Qual o sentido de divulgar agora algo completamente superado há quatro anos? Dar margem para manchetes de que mortos recebem Bolsa Família? Vale ressaltar que a morte de um indivíduo não torna a família inelegível ao programa. Ao contrário, há situações em que o falecimento torna a família ainda mais vulnerável.
  • Em relação à doação para campanha eleitoral e propriedade de empresas, não existe impedimento legal para que um beneficiário do Bolsa Família realize doações ou seja proprietário de microempresa. Na averiguação feita a partir dos indícios levantados pelo TCU em 2010, os casos identificados não se confirmaram, mas indicaram a existência de outras fraudes: beneficiários sendo usados por terceiros para compra de bens, ou contratados para fazer campanhas para candidatos, registrados incorretamente como doadores de campanha. Ou seja, não era fraude no Bolsa Família, mas crime eleitoral.
  • No caso de beneficiários sem CPF, é preciso esclarecer que o documento só é obrigatório para os titulares do benefício. Sua ausência não implica recebimento indevido de recursos. Recentemente, o TCU fez avaliação e identificou casos residuais de duplicidade de CPF entre os beneficiários, que já estão sendo tratados por meio da rotina anual de atualização cadastral do Bolsa Família.9

Seguindo a tendência de buscar formas de reduzir o programa, uma das ideias ventiladas pelo atual ministro é a criação de um “bônus” para municípios que reduzirem o número de dependentes do Bolsa Família. Segundo essa visão, os municípios são coniventes com as fraudes no programa e, inclusive, utilizam o programa eleitoralmente. Os municípios são responsáveis pelo cadastro, mas a concessão é feita diretamente pelo Ministério, não havendo nenhuma segurança de que, feito o cadastro, o benefício será concedido.

Outra alegação é que os municípios não se engajam em ações de inclusão produtiva voltadas às famílias do Programa Bolsa Família. Se o problema que se busca enfrentar é a falta de engajamento dos municípios em ações de inclusão produtiva, cria-se um incentivo relativo ao engajamento, e não um incentivo para que excluam famílias do Bolsa Família. O que essa medida incentiva, na prática, é a diminuição da qualidade do cadastro. A melhor estratégia para receber o bônus será reduzir a capacidade do município de realizar cadastros. Com isso, as atualizações cadastrais e novos cadastros não são feitos e o número de beneficiários do Programa Bolsa Família será reduzido. Sob a ótica financeira, será duplamente rentável para o município: reduz seus custos com o Cadastro Único e aumenta sua receita com o bônus pago. Em vez de incentivar os municípios a realizarem a busca ativa das famílias pobres e incluírem-nas nas políticas sociais, opta-se por incentivar o município que exclui beneficiários. Quem fica desassistido nessa história é a família pobre, que, para todos os efeitos, não será mais dependente do Bolsa Família e terá se “emancipado” – quando, na verdade, apenas voltará a ser invisível para a política social.

A principal iniciativa é polêmica: a prefeitura que reduzir o número de dependentes do programa passará a ganhar um bônus. O principal argumento é que há prefeitos que não investem em ações que possam resultar na melhoria da renda das famílias e até utilizam o programa para fins eleitorais. Isso sem falar nas fraudes que ocorrem, envolvendo o cadastro.”

(…) Osmar Terra faz questão de afirmar que o governo não tem a intenção de encolher o programa, mas qualificar a aplicação dos recursos, combatendo irregularidades e estimulando que as famílias saiam da linha de pobreza.10

O mais recente “balão de ensaio” lançado pelo Ministro do Desenvolvimento Social e Agrário foi o anúncio de que utilizará o orçamento do Bolsa Família para o microcrédito. A ideia colocada é que os pobres não conseguiriam acessar microcrédito porque não têm garantias para dar aos bancos, o que é verdade. Não há razões, no entanto, para que o recurso para microcrédito saia do orçamento de um programa de distribuição de renda. Até porque, teríamos uma situação em que uma família incluída no Programa Bolsa Família – formada por um casal e duas crianças, que recebe R$ 160,00 por mês – teria seu benefício cortado e em troca o governo interino lhe ofereceria um microcrédito, sem necessidade de fiança ou garantia. Com essa ação, “espera-se” que essa família tenha maiores chances de aumentar sua renda, pois trocou R$ 1.920,00 por ano de Bolsa Família – o que lhe dava uma segurança mínima para comer, manter os filhos na escola, procurar um trabalho melhor – por um empréstimo de R$ 1.920,00 em um ano. Ou seja, a família contrairia uma dívida!

Osmar Terra vai destinar parte do orçamento do Bolsa Família para criar mais linhas de microcrédito para famílias pobres e extremamente pobres. O objetivo é que praticamente não sejam feitas exigências para a concessão dos empréstimos. Segundo o ministro, o Banco do Brasil e a Caixa fazem exigências impossíveis de serem cumpridas pelos mais pobres. Com isso, o governo espera acelerar a saída de famílias do programa. Diz Terra:

— Vai ser um empréstimo no fio do bigode.11

Em face desses argumentos, as perspectivas relativas ao combate à pobreza no país sob a liderança de Michel Temer não são as melhores. Esse início do governo interino já oferece uma boa amostra, misturando amadorismo e voluntarismo guiados por uma visão preconceituosa da pobreza e das políticas públicas que se mostraram eficazes na sua redução. Se houvesse um compromisso verdadeiro com as políticas sociais e o combate à pobreza, medidas para reduzir o alcance do Bolsa Família em um momento de forte crise econômica não estariam no centro de suas preocupações.

Na verdade, o debate deveria ser em torno de quais políticas complementares poderiam ser realizadas para melhorar a inserção dessas famílias no mercado laboral, na escola, no sistema de saúde – que foi o que guiou o Plano Brasil Sem Miséria. Fica evidente, a cada dia que passa, que esse compromisso não existe. Afinal, para o governo interino, a miséria é merecida pelos miseráveis e qualquer proteção social que lhe dê alguma segurança é maléfica ao miserável, pois o aprisionaria à pobreza. Esse governo sequer enxerga que “a fome tem pressa”, como diria o saudoso sociólogo Betinho, um dos pioneiros a pensar em um programa de renda mínima para aqueles que nada ou pouco têm. Não é possível discutir melhoria de vida para aqueles que não têm sequer o mínimo: comida no prato!