O golpe é contra as mulheres

por De Olho no Golpe

Como já se demonstrou em texto anterior, o processo de impeachment e o “governo”1 Temer, por sua completa inconstitucionalidade e ilegitimidade, constituem verdadeiro golpe ao país. Esse golpe tem diferentes facetas e componentes que necessitam ser revelados se queremos entender seu alcance e riscos, e se desejamos barrar os retrocessos que ora se delineiam.

Nesse sentido, é preciso evidenciar a forte vertente patriarcal desse “governo”, ou seja, como ele tem em suas políticas, programas e ações a ideia da preponderância ou supremacia do homem nas relações sociais, em detrimento das mulheres. Isso pode ser notado desde o dia primeiro dia da nova gestão, mas também antes disso, na gênese do próprio impeachment.

O que isso quer dizer? Quer dizer que o assédio moral e político sofrido pela presidenta Dilma vinculou-se, e ainda se vincula, intimamente com o fato de ela ser mulher. Convidamos a deixar de lado qualquer preconceito para participar desta reflexão conosco: o espaço público e, ainda mais, o espaço político sempre foram tidos como espaços eminentemente masculinos. Uma mulher que se alça a essas esferas quase sempre fica sujeita à desqualificação imediata e automática, sendo, em geral, julgada de forma mais dura, permanente e íntima que seus colegas homens que desenvolvem os mesmos comportamentos e praticam os mesmos atos.

Quando alcançam posições de relevo no espaço profissional, mulheres são analisadas, julgadas e condenadas, não apenas com relação às suas competências e habilidades técnicas. E isso, infelizmente, não é algo que atinge exclusivamente a Presidenta Dilma. Pense em quantas vezes você já ouviu as seguintes linhas de comentários:

  1. A mulher alcançou a posição exclusivamente devido à sua relação com um homem (por ser casada com alguém, por ter se relacionado sexualmente com alguém, por alguém querer se relacionar sexualmente com ela, por ser filha de alguém, etc.) – no caso da Presidenta Dilma, ela só teria chegado à Presidência porque foi a eleita por Lula. A crítica se desenvolve no sentido de que Lula escolheu mal uma mulher para sucedê-lo. Alguns ainda apontam que o problema residiria exatamente na escolha de uma mulher. Tal crítica desconsidera que quem escolheu Dilma foi a maioria das brasileiras e dos brasileiros, por meio do voto direto, secreto e universal.
  2. A mulher não possui uma postura condizente com sua condição de mulher – no caso da Presidenta Dilma, a crítica ora a ataca por adotar uma postura rígida, o que é associado a uma característica masculina, sendo, então, qualificada por adjetivos depreciativos como “gerentona”. Porém, também é criticada quando demonstra qualquer mínimo indício de fragilidade, sendo, nesse caso, tachada de ser “louca” ou “desequilibrada”. Já foi criticada, ainda, por não ser casada, por estar acima do peso, pelo guarda-roupa, pelo corte de cabelo, etc. Já teve também sua orientação sexual questionada no Plenário da Câmara dos Deputados. Todos esses aspectos não guardam qualquer relação com a sua habilidade enquanto Chefe de Estado.
  3. A mulher falhou porque é mulher – no caso da Presidenta Dilma, os eventuais erros são atribuídos à sua condição de mulher, pois, para esse grupo de críticos, uma mulher não possuiria condições para governar o país. Dizem, então: “É isso que dá eleger uma mulher”.

É claro que Dilma cometeu erros políticos, mas o impeachment sem qualquer indício concreto de crime de responsabilidade só foi possível pela constante desautorização de uma mulher governando o país, sempre sendo avaliada de forma machista – seja por seu peso, suas roupas, a ausência de um marido, o alegado descontrole emocional – expressa em sua forma mais evidente em adesivos perpetuadores da cultura do estupro.

O golpe, acima de tudo, trata-se da ação direta e inequívoca de um grupo de homens querendo silenciar a voz de uma mulher. Por isso, e conforme será demonstrado a seguir, trata-se de um golpe contra as mulheres e contra todas as conquistas traçadas rumo à igualdade de gênero.

Ministérios sem mulheres

“Uma imagem vale mais que mil palavras”, diz o ditado. Logo, nos parece de grande importância observar a primeira imagem do “governo” de Temer, vista em 12 de maio no Palácio do Planalto em ato de posse dos novos ministros. TODOS HOMENS. O ato é de composição das pastas da Esplanada e curiosamente dentre os 23 (vinte e três) escolhidos não existiu nenhuma mulher. Mesmo entre os espectadores não é possível observar mulheres. É sobre essa imagem (e sua discrepância com composição anterior) que precisamos falar:

Temer foi o primeiro presidente desde Ernesto Geisel (1974-1979) a não incluir mulheres na Esplanada – escolha política que pode levar o Brasil a despencar 22 posições no ranking de igualdade de gênero no Fórum Econômico Mundial. Se uma organização econômica internacional compreende que a ausência de mulheres em posições de poder político, por si só, já indica retrocesso na igualdade de gênero, não é preciso ir muito além para perceber o problema.

De toda forma, para não ficarmos no subentendido, resta evidenciado que a composição da foto demonstra, no mínimo, falta de diálogo com a maioria da população brasileira, que pelos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, divulgada pelo IBGE em 2013, já ultrapassa o número de 103,5 milhões de mulheres. A imagem do novo “governo” transmite, ainda, forte indicativo de que as políticas públicas serão pouco atentas à igualdade de gênero e ao empoderamento das mulheres.

Afinal, qual delas estará em posição forte o suficiente para pautar tais políticas? Qual dos novos ministros concebe o que é ser mulher e todas os entraves e dificuldades daí resultantes? Qual dele trará consigo as nuances do debate sobre as desigualdades entre homens e mulheres? Verdade seja dita, mesmo que algum pudesse satisfatoriamente desempenhar esse papel, não seria aceitável. Representatividade importa e configura um dos passos rumo à igualdade de gênero.

Seria possível dizer que UMA imagem não é o suficiente para tamanha crítica, então passamos a analisar fatos posteriores. No dia seguinte ao ato da posse, após muitas reprimendas à ausência de mulheres, Eliseu Padilha, ministro da Casa Civil, disse: “Nós vamos sim trazer mulheres a participar do governo em postos que ontem eram ministérios, mas que hoje têm as mesmas atribuições, mas com nome diferente”. Ora, a emenda saiu pior que o soneto. Haverá mulheres no “governo” com as mesmas atribuições e responsabilidades de ministros, mas não com o mesmo status. Corrobora-se, assim, o padrão machista da sociedade, em que o trabalho feminino nunca goza de reconhecimento e relevância: mesmo trabalhando igualmente, com idênticas obrigações, raramente as mulheres são tratadas como iguais, nem em status, tampouco em direitos.

A justificativa seguiu em termos nem um pouco melhores ao alegar tempo reduzido, quando o mesmo período foi suficiente para encontrar homens; como se fosse necessário mais prazo para encontrar mulheres para os postos. Acontece que há mulheres competentes, com trajetória e inclusive alinhamento político com a nova gestão para compor os cargos.

O ministro também apontou como elemento de defesa que a chefe de gabinete de Michel Temer é uma mulher. Aqui faz-se necessário explicar como esse dado na verdade depõe contra o ilegítimo governo. Apesar de posição relevante, a chefia de gabinete é comumente designada a mulheres por seu papel se assemelhar à “organização da casa” e envolver atividades de microgestão, para que outra pessoa (Ministro, Presidente) possa ter a agenda livre para desempenhar maior papel político. Uma reprodução das clássicas relações domésticas centradas na figura do homem. Fica patente, assim, a visão de Temer e seus aliados sobre qual é o lugar da mulher em sua gestão.

Mulheres sem ministério

Não só na escolha dos ministros, mas também na escolha dos Ministérios que seriam mantidos, as mulheres foram preteridas. A reforma ministerial, que reduziu de 32 (trinta e dois) para 23 (vinte e três) o número de ministérios, extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, incorporando os temas referentes a essa pasta ao hipertrofiado Ministério da Justiça e Cidadania.

A sinalização política do ato é clara. As pautas das mulheres, da igualdade racial e dos direitos humanos não são relevantes o suficiente para a nova gestão de modo a justificar um Ministério. Podem ser desenvolvidas de forma setorizada e diminuída, sem destaque ou centralidade, com a igualdade de gênero enquanto política sem status relevante. Esse é o único significado possível da medida, considerando-se que esta não significou redução de gastos. A redução dos ministérios serviu apenas para retirar o que era considerado “gordura”, numa patente subalternização das questões de gênero. Mais um retrocesso. Ficamos sem ministras e sem Ministério.

Para completar, Temer nomeou para a Secretaria de Políticas para as Mulheres a ex-deputada Fátima Pelaes (PMDB-AP). Evangélica, ex-presidente da Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida, a Secretária manifestou-se, durante a atividade parlamentar, contra o aborto, mesmo em caso de estupro, numa sessão que discutia o Estatuto do Nascituro. Além disso, Pelaes votou contra proposta do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), que proibia empresas de pagar salários diferentes a homens e mulheres para o mesmo cargo.

A Secretária ainda minimizou o fato de Temer não ter nomeado nenhuma mulher para o primeiro escalão dos ministérios:

Ele [Michel Temer] teve a sensibilidade de criar a primeira secretaria da Mulher porque ela precisava de um tratamento diferenciado em São Paulo e quando esteve na Câmara, garantiu a Procuradoria da Mulher. Isso demonstra o respeito que tem. [A falta de mulher no primeiro escalação] não vai fazer diferença e nem tirar a importância de continuar trabalhando com as políticas públicas.

Ora, acreditar que a ausência de mulheres em posições de poder não vai fazer diferença é atestar sua contraindicação para exercer a função de Secretária de Política para Mulheres.

A extinção do Ministério e a nomeação de Fátima Pelaes são decisões preocupantes não apenas do ponto de vista simbólico, pois também representam o início concreto do desmonte da pauta de igualitária de gênero. Não restam dúvidas de que as políticas desenvolvidas até então e os avanços conquistados ao longo dos anos estão em risco. Por isso, convocamos todas a estarem vigilantes.

Questões de gênero, não de polícia

O estupro coletivo ocorrido em maio no Rio de Janeiro gerou fortes reações nas redes e mídias sociais, com manifestações de indignação e a convocação de protestos contra a cultura de estupro e a violência sexual. Em resposta, o Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, anunciou dia 31 de maio, a criação de um Núcleo de Proteção à Mulher, vinculado ao Ministério, para “coordenar trabalhos de combate à violência à mulher”.

Em 2 de junho, a medida foi publicada no Diário Oficial da União como Portaria nº 586, de 2016, elencando entre as competências do Núcleo

assessorar o Ministro de Estado da Justiça e Cidadania na definição, na implementação e no acompanhamento de políticas, de programas e de projetos de segurança pública, prevenção social e controle da violência e criminalidade contra a mulher.

Por meio desse ato, o “governo” interino ignorou 13 anos de trabalho de enfrentamento à violência contra a mulher desempenhado pela Secretaria de Política para Mulheres, órgão cuja missão é defender os direitos das mulheres, fiscalizar a aplicação da Lei Maria da Penha e combater todo e qualquer tipo de violência, seja ela física, moral, psicológica, sexual ou patrimonial. Criou um núcleo com as mesmas competências sem qualquer diálogo com tal Secretaria, esvaziando seu papel, sua história e suas conquistas.

Pior: o ato transforma o Núcleo de Proteção à Mulher em uma Coordenação-Geral de Proteção à Mulher no âmbito do Gabinete do Ministro de Estado da Justiça e Cidadania. Isto é, esvazia toda uma Secretaria Especial, propondo em seu lugar um órgão diminuto dentro do Gabinete, em claro rebaixamento da política para as mulheres, que é mais ampla e diversificada do que o ora intentado.

Planeja-se, ainda, deslocar verba da Força Nacional de Segurança Pública para bancar convênios com as polícias estaduais e assim reforçar o combate à violência contra a mulher. Com isso, o foco deixa de ser a igualdade de gênero para ser a repressão policial (masculinizada, diga-se de passagem). Subverte-se, desse modo, toda a lógica de combate à violência contra a mulher, tentando solucionar meramente como um problema de segurança pública aquilo que constitui um conflito enraizado no patriarcalismo, com impactos transversais (na educação, na saúde pública, no mercado de trabalho, no acesso à justiça, etc.) e que, por isso mesmo, deve ensejar políticas públicas também transversais e diversificadas.

Na verdade, mesmo sob o enfoque repressor, parece haver pouca preocupação com as mulheres, como se nota da fala do Ministro de Justiça e Cidadania ao anunciar a criação do mencionado Núcleo: “A mulher é anos e anos agredida e acaba matando o agressor. Outro fato grave que detectamos é o filho que acaba matando o pai para defender a mãe”. Tal fala traz subjacente a premissa da criação de um órgão para a prevenção da violência contra as mulher, cuja finalidade última seria, em verdade, a proteção de homens contra essas mulheres violentadas. A ênfase do discurso aponta para a preocupação com uma mulher assassina ou com a exposição eventual de seu filho (homem), a situações extremas que podem ensejar a violência contra o pai (outro homem), e não o foco no enfrentamento da violência sofrida pelas mulheres, há séculos.

Infelizmente, não é de se esperar uma postura diferente de quem se manifestou em 2015, frente ao caso de estupro de uma funcionária do metrô de São Paulo, nos seguintes termos: “Não se consumou o roubo do cofre. É importante que isso seja colocado para mostrar que há segurança onde se guarda os valores no Metrô”.

Educação sem igualdade

Seguindo por outras pastas, também encontramos retrocessos para as mulheres.

No dia 25 de maio, o Ministro da Educação no governo interino, Mendonça Filho recebeu, em audiência extraordinária, Alexandre Frota e um outro integrante do grupo Revoltados Online, movimento extremista de direita que atuou intensamente pelo afastamento da Presidenta Dilma Rousseff. Conforme se soube posteriormente, a reunião teve por objetivo a discussão sobre “algumas ideias para ajudar o país”, (nas palavras do ator nas redes sociais), notadamente uma proposta para “tirar a doutrinação ideológica das escolas”, bandeiras relacionadas a um projeto chamado “Escola sem Partido”, que tem como um de seus principais apoiadores o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-SP).

Entre os objetivos do projeto Escola sem Partido se encontram também a proibição do ensino sobre sexualidade, ideologia de gênero e outras formas de “ameaças à família” em sala de aula. Em um dos projetos legislativos apontados como relacionados ao movimento já houve, inclusive, a tentativa da previsão de pena de prisão aos professores que desrespeitarem tais determinações, apesar da resistência de professores e especialistas da área.

A reunião entre Mendonça Filho e Frota ensejou um amplo debate nas redes sociais, muitas vezes permeado por memes e outras piadas que ridicularizavam o encontro de uma autoridade pública de primeiro escalão, responsável pela relevantíssima pasta das políticas educacionais, com um ator que não possui nenhuma atuação conhecida na área. Contudo, como diz o dito popular, seria realmente cômico tal episódio, caso não revelasse aspectos tão trágicos acerca do descompromisso do governo interino com a igualdade de gênero e a proteção dos direitos das mulheres, bem como sobre a necessária inserção dessas discussões nas escolas.

Cabe a reflexão: o que significa propor a retirada do ensino sobre IGUALDADE de gênero nas escolas? Especialmente quando há pouco tempo o país foi devastado pelas repugnantes notícias de estupros coletivos perpetrados contra meninas, debaixo dos olhos e omissões de todos?

Será a institucionalização da omissão, a assunção deliberada de que este governo não possui qualquer responsabilidade com a prevenção da violência contra as mulheres? Ora, a violência física e sexual são a faceta mais gritante de uma sucessão de violências cometidas diariamente contra as mulheres, reflexo de uma cultura machista que só pode ser adequadamente desconstruída com políticas públicas consistentes que incluam a educação para a igualdade entre mulheres e homens, meninas e meninos, independentemente de classe, cor, orientação sexual, etc.

E a escola é o espaço ideal para, desde cedo, incutir a IGUALDADE como valor humano fundamental. Se ensinar a igualdade entre homens e mulheres for “doutrinação ideológica” e “ameaça contra a família”, como podemos admitir um governo que se posicione contrariamente a essa “ideologia”? Que famílias serão protegidas assim?!

É necessário lembrar que a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) se manifestou recentemente sobre a violência de gênero no Brasil, afirmando expressamente que a inclusão das temáticas de sexualidade e de gênero na educação é essencial para uma educação “inclusiva, equitativa e de qualidade”:

Para a UNESCO no Brasil não resta dúvida de que a legislação brasileira e os planos de educação devem incorporar perspectivas de educação em sexualidade e gênero. Isso se torna ainda mais importante uma vez que a educação é compreendida como processo de formar cidadãos que respeitem às várias dimensões humanas e sociais sem preconceitos e discriminações.

Por fim, receber propostas que vão na contramão do avanço civilizatório, inclusive no plano internacional, das mãos de um emissário como Alexandre Frota carrega ainda outro peso simbólico, quando recordamos que ele já foi acusado de apologia ao estupro após declarar, em rede nacional, ter estuprado uma mãe de santo.

Em um governo sem mulheres, serão esses os interlocutores para a definição das políticas públicas que afetam, muitas vezes de forma irreversível, as mulheres?!

Diga-nos com quem andas, e te diremos por que não vamos contigo.

Mulheres sem Temer

Por todo o exposto, não há dúvidas de que estamos diante de um golpe contra as mulheres. E, por isso mesmo, estamos vigilantes e em luta, e convidamos você a estar também. Fica a mensagem, propagada em diversas manifestações pelo país: queremos ser mulheres sem Temer.


  1. Usaremos as aspas para negar a legitimidade de um governo não eleito, resultante de um golpe de Estado.