O Cultura Viva no desgoverno Temer

Cidadania, Diversidade e Pontos de Cultura

Na SCDC/MinC foram enxertadas pela equipe de Temer-Calero:

  • a área de formação artística e cultural, das ações no campo cultura-educação, da interface MinC-MEC, agora rebaixada a uma Coordenação-Geral;
  • a antiga Diretoria, agora Departamento, de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas.

O Gabinete e o setor de acompanhamento e análise de prestação de contas da SCDC passaram a ter de lidar com esse universo ampliado. Justo uma das áreas mais reconhecidamente sobrecarregadas do MinC, que acumula passivo de análise de convênios e desafios de acompanhamento preocupantes. Somem-se aí os prejuízos dos cortes e concurso interno com falhas graves, e vimos nesses meses um grande prejuízo à Política Nacional de Cultura Viva. O passivo de análise de prestação de contas, e a busca de soluções adequadas que respeitem a parceria com as entidades é indiscutivelmente um dos problemas basilares dessa Política.

A lentidão na celebração de parcerias (convênios, termos de compromisso cultural, termos de execução descentralizada, dentre outros) foi relatada por pontos de cultura e interlocutores próximos ao MinC como um fator muito grave. Um exemplo é o Edital Cultura de Redes – Categoria Nacional/Regional, que selecionou em dezembro/2015 um total de 31 entidades (novos pontos e pontões de cultura), e em 2016 restava a etapa de análise e ajustes técnicos do plano de trabalho para celebração das parcerias e pagamento. Pontos de Cultura relatam que até finais de março apenas cinco dos 31 chegaram à celebração da parceria, e apenas quatro foram efetivamente pagos para poder iniciar a execução do Projeto. As parcerias federativas do Cultura Viva (convênios de redes estaduais, municipais e intermunicipais) também andam em ritmo alarmantemente moroso.

Entre gestores públicos e de pontos de cultura corre preocupação comum pela abordagem da atual gestão a essa Política Nacional. Ágeis em apontar problemas, mas fracos e pouco comprometidos com a busca de soluções. A solução frequente vem sendo o cancelamento de parcerias e a devolução de recursos à União, como no caso da parceria com a UFSCAR, em que o MinC deliberadamente colocou abaixo um projeto de fortalecimento de rede de pontos de cultura na cidade de São Carlos (SP), que já estava com edital realizado e pontos de cultura selecionados.

A SCDC ainda precisa seguir estruturando a Política Nacional de Cultura Viva, instituída pela Lei 13.018/2014, com normativos, manuais, ações de formação, definição de sistemas informatizados, o que vem sendo feito, segundo relatos, mas em ritmo de conta-gotas. Algumas dessas ações estão paralisadas mesmo.

O setor sofre muito também com a instabilidade de dirigentes. A ex-Secretária Renata Bittencourt e o ex-diretor Robson Camilo foram exonerados por Roberto Freire, que nomeou para Secretária a ex-vereadora do PPS de Campo Grande (MS), Luiza Ribeiro. Em menos de uma semana após a nomeação, a grande mídia difundiu que Luiza havia pedido “Fora Temer”, “Fora Renan”, e feito críticas ao governo Temer. Roberto Freire nomeou para substituí-la a presidente estadual do PPS-Pernambuco, Débora Albuquerque. Eternas transições que atrasam a vida de quem precisa ver as ações acontecendo efetivamente em suas comunidades.

E a nova gestão já começa a mandar embora da SCDC servidores de carreira que têm memória e compromisso com a Política Nacional de Cultura Viva, com as ações de promoção de Cidadania Cultural.

Ainda, em relação aos Editais de premiação da Política Nacional de Cultura Viva, relatos de ex-servidores, pontos de cultura, pessoas e entidades premiadas em editais da SCDC/MinC apontam para o seguinte cenário nesses meses de gestão pós golpe:

  • Havia, após o golpe, quatro editais de premiação que haviam sido lançados em anos anteriores (2014 e 2015) com candidatos já selecionados, em fase de entrega de documentação final ou já em fase de pagamento.
  • Dois editais – Prêmio Culturas Ciganas e o Prêmio Culturas Indígenas – foram priorizados e efetivamente pagos, apesar de que em ritmo mais lento devido ao impacto dos cortes de pessoal tanto na SCDC, como na área de execução orçamentária e financeira.
  • No caso dos editais “Prêmio Cultura de Redes – Categoria Local” e “Prêmio Pontos de Mídia Livre”, dos candidatos que não haviam sido pagos pela gestão Juca Ferreira, pouquíssimo foram pagos pela gestão Temer-Calero. Ao pedir explicações ao MinC, as entidades e grupos foram informados de que os processos estavam aptos para pagamento mas em avaliação pelo Gabinete do Ministro e Secretaria Executiva por meses a fio sem liberação financeira. Que tipo de avaliação seria essa?

Um dos pilares fundamentais da Política Nacional de Cultura Viva (Pontos de Cultura), conforme Lei nº 13.018/2014, é a participação social e gestão compartilhada com poder público, em sintonia com as diretrizes e princípios do Plano Nacional de Cultura (Lei 12.343/2010) e do Sistema Nacional de Cultura (Art 216-A da Constituição Federal), que traz à CF clara diretriz de democratização dos processos decisórios com participação e controle social.

Nesse sentido, no âmbito do Cultura Viva, são elementos fundamentais:

  • a Comissão Nacional de Pontos de Cultura, definida pela IN MinC nº 08 de 2016 como colegiado autônomo, de caráter representativo de Pontos e Pontões de Cultura, instituído por iniciativa destes, e integrada por representantes eleitos em Fórum Nacional de Pontos de Cultura;
  • O Fórum Nacional de Pontos de Cultura: instância colegiada e representativa da rede de Pontos e Pontões de Cultura, de caráter deliberativo, instituída por iniciativa destes e realizada com apoio da administração pública, com o objetivo de propor diretrizes e recomendações à gestão pública compartilhada da PNCV, bem como eleger representantes dos Pontos e Pontões de Cultura junto às instâncias de participação e representação da PNCV;
  • a Teia: reunião periódica de Pontos, Pontões, gestores públicos, representações dos segmentos beneficiários da PNCV e instituições e entidades parceiras, podendo contemplar etapas de caráter territorial, em âmbito nacional, estadual, do Distrito Federal, municipal ou regional, de caráter temático ou identitário;

A última TEIA Nacional foi realizada Natal (RN) em 2014. A próxima TEIA estava prevista para ser realizada em 2016, em Salvador (BA) e havia medidas iniciadas pela gestão Juca Ferreira nesse sentido. Após o golpe, a nova gestão da SCDC argumentou, segundo relatam pontos de cultura e ex-servidores, que não havia tempo hábil para realização das etapas estaduais, setoriais a tempo para realizar a TEIA em 2016, e adia para 2017 a etapa nacional (informação nunca oficializada). Cumpre registrar que relatos apontam que mesmo antes do golpe, ainda na gestão Juca Ferreira, alguns pontos de cultura e gestores estaduais/municipais do Cultura Viva já achavam arriscada a realização da TEIA Nacional em 2016.

Ocorre que o novo ministro Roberto Freire deu declarações preocupantes no Programa Roda Viva, e fez questão de reproduzir as frases em seu perfil no Twitter:

“O Ponto de Cultura deixou de ter a atividade-fim como primordial e começou a fazer assembleísmo com interesses político-partidários”.

“Gestão será de continuidade, mas haverá mudanças. Já afirmamos que vamos manter os pontos de cultura, mas discutiremos esses ajustes”.

Diante das declarações, sobram incertezas sobre a compreensão do atual ministro e de sua equipe em relação à participação social e gestão compartilhada. Farão a TEIA Nacional? De que forma a farão?

Fruto de articulação pela equipe da então Secretária Renata Bittencourt (gestão Calero) a Comissão Nacional de Pontos de Cultura se reuniria em Brasília no início de dezembro de 2016. Uma das primeiras medidas do novo ministro Roberto Freire foi cancelar a reunião, faltando poucos dias para sua realização. Vale lembrar ainda que em reportagem para “O Globo”, Calero argumentou que “a meta do Plano Nacional de Cultura, por exemplo, era chegar a 2020 com 15 mil pontos de cultura. Essa não é uma meta exequível. Deveria ser entre 6.500 e 8 mil. Queremos rever esses planos diante da nova realidade que se impôs ao país nos últimos anos”.

Independente de erros ou acertos no estabelecimento dessa meta, que segundo relatos de pontos de cultura se deu em momentos conturbados em 2011, o fato é que vai sendo reduzida cada vez mais a capacidade operacional da Secretaria responsável por essa política, e dessa forma fica cada vez menos possível esperar-se que o MinC cumpra quaisquer metas minimamente dignas.

Vale lembrar também que não houve avanços nas reuniões do Comitê Técnico de Cultura de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) para fazer análises e monitoramento das políticas culturais voltadas para esse público. O Comitê foi criado em outubro de 2015, pela gestão Juca Ferreira.

“Diversidade” como discurso cosmético (e de má qualidade)

Em recente artigo publicado no site do MinC o ministro Freire afirma o seguinte:

“Neste ano que se inicia, uma de nossas preocupações é afirmar a criação cultural no seu sentido mais amplo, como instrumento de integração entre os povos e expressão da diversidade. Nesse sentido, o Brasil tem muito a mostrar ao mundo e pode servir como exemplo da convivência saudável e profícua entre as mais variadas expressões culturais. Somos fruto de um processo de integração entre etnias e crenças, que constituem uma inequívoca pluralidade como base de nosso compromisso com a tolerância e o diverso.”

O trecho permite abordar um tema crucial para as políticas públicas culturais: os usos e abusos de termos como “diversidade” e “pluralidade”. Os movimentos indígena e quilombola afirmam reiteradamente, nos ambientes de discussão sobre políticas culturais, que não é possível discutir políticas públicas culturais sem falar de terra e conflitos fundiários. O movimento hip hop sempre vai trazer o racismo e o genocídio da juventude negra para o debate. As comunidades tradicionais de matriz africana não poderão ficar inertes a essas frases do Ministro porque recebem pedradas na rua, porque terreiros são incendiados frequentemente, porque sofrem a violência de ver crescer cada dia uma mídia e uma bancada parlamentar fundamentalista no país, que os persegue sistematicamente. As mulheres e o movimento feminista têm trabalhado para que toda conferência de cultura esteja atenta ao tema machismo, à cultura do estupro, assim como o movimento LGBT faz com a denúncia da homofobia, aspectos nefastos que matam diariamente no Brasil.

É linda a diversidade cultural dos povos e comunidades tradicionais, mas muitas empresas da indústria química, de cosméticos, farmacêutica, agrícola e de gêneros alimentícios ainda praticam regularmente, sempre que possível, a pirataria de conhecimentos tradicionais. Vendem produtos cuja elaboração envolve conhecimentos desses povos e comunidades, mas não repartem os benefícios que ganham com a venda de seus produtos, e seu batalhão de advogados e lobistas resolve qualquer eventual problema jurídico ou administrativo. Diariamente no Brasil o egoísmo e a ganância vencem o respeito à diversidade. Na hora de dividir recursos, às favas com a pluralidade. Não se pode falar de diversidade cultural ocultando os conflitos e violências cotidianas sofridos pela maioria absoluta da população brasileira. Some o número de mulheres, com negros, com pobres, com LGBT, com indígenas, com povos e comunidades tradicionais, com pessoas com deficiência, com pessoas idosas etc e veremos que restaria um percentual ínfimo fora dos grupos socioculturais alvo de preconceitos e violências cotidianas no Brasil.

Pegando carona no sobrenome Freire o ministro promove o mito da democracia racial de Gilberto Freire, mas é inegável que “o processo de integração entre etnias e crenças” no Brasil é fundado pelo estupro de mulheres indígenas e negras pelos colonizadores, e em dias atuais essa violência ainda é reafirmada diariamente por comportamentos racistas, machistas, elitistas, homofóbicos que definitivamente não fazem desse país um “exemplo da convivência saudável e profícua entre as mais variadas expressões culturais”.