A reforma administrativa do governo interino: qual Estado e para quem?

por De Olho no Golpe

Serviço Público pela Democracia

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O primeiro ato do governo ilegítimo de Michel Temer, a Medida Provisória nº 726, instituiu amplas mudanças na estrutura do governo federal, com impactos negativos sobre as ações realizadas por vários órgãos e entidades, sobretudo para as áreas responsáveis pelas políticas sociais, de promoção dos direitos humanos e de proteção dos setores mais vulneráveis da população. As medidas contidas na reforma ministerial sinalizam o viés conservador e de retrocesso deste governo em detrimento de importantes avanços conquistados ao longo dos governos Lula e Dilma, além de constituírem uma clara incompatibilidade com o caráter interino – e portanto provisório e passageiro – desta gestão.

A extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, com o consequente deslocamento para o Ministério da Justiça das Secretarias Especiais de Direitos Humanos (SDH), de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), de Políticas para as Mulheres (SPM) e, após a complementar Medida Provisória nº 728, da Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência revela, de um lado, ausência de compromisso com as políticas de direitos humanos e de promoção dos direitos das minorias e, de outro, desconhecimento quanto aos desafios institucionais desses segmentos.

A ausência de compromisso se evidencia pelo rebaixamento da relevância política e do empoderamento dos atores responsáveis por essas agendas. Não é uma questão meramente simbólica: a consequência clara é que não mais existirá um ator com o peso institucional próprio de um Ministro de Estado para tratar especificamente dessas pautas nas articulações internas do governo, na relação direta com a Presidenta, bem como no diálogo com os demais Poderes, com a sociedade, com a imprensa e com a comunidade internacional.

Vários avanços conquistados nos governos Lula e Dilma contaram com o apoio decisivo de ministras e ministros da SPM, SDH e SEPPIR, a exemplo da aprovação das Propostas de Emenda à Constituição de ampliação dos direitos dos trabalhadores domésticos e de combate ao trabalho escravo. A atuação da SPM também foi fundamental para assegurar o protagonismo da mulher como eixo familiar estruturante dos Programas Minha Casa, Minha Vida e Bolsa Família (cujos beneficiários são preferencialmente mulheres), além da consolidação da Casa da Mulher Brasileira, uma necessária inovação no atendimento integrado e humanizado às mulheres em situação de violência. Já a SEPPIR conseguiu implementar avanços significativos das políticas de cotas no acesso às universidades públicas e aos concursos públicos. Dificilmente essas políticas avançariam tanto sem a força política desses (agora extintos) Ministérios para impulsioná-las.

É incompatível com os desafios institucionais dessas secretarias especiais sua vinculação à mesma estrutura reservada para órgãos de justiça e segurança pública. Parte significativa da atuação de organismos de direitos humanos e de promoção dos direitos das minorias ocorre em contraposição aos constantes abusos perpetrados por agentes públicos vinculados às áreas de segurança pública, ao sistema de justiça e penitenciário. Há nítido conflito em relação aos programas de proteção a vítimas e testemunhas, às ações de combate à tortura e à violência policial motivada por razões de gênero, raciais ou contra a população LGBT. O governo interino demonstra, com isso, sua completa ignorância ou, um sincero desprezo sobre os motivos que levaram a criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos com status de ministério e desvinculada da estrutura do Ministério da Justiça, em 1999.

Além dos retrocessos no plano institucional, é necessário registrar o perfil paradoxal dos titulares do Ministério da Justiça e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. O Ministro Alexandre de Moraes, enquanto Secretário de Segurança Pública de São Paulo, comandou uma pauta autoritária de repressão a estudantes e de criminalização dos movimentos sociais, além de qualificar recentemente como “atos de guerrilha” as legítimas manifestações em defesa do mandato da Presidenta Dilma Rousseff. Por sua vez, foi indicada para a SPM a ex-Deputada Fátima Pelaes, que no curso de seus mandatos se posicionou de forma oposta às pautas históricas da Secretaria, a exemplo de sua opinião contrária à descriminalização do aborto, mesmo em casos de estupro, garantia esta, expressa em lei.

Outra demonstração clara de indiferença do governo interino com a pauta social refere-se à vinculação da Previdência Social ao Ministério da Fazenda. Não se ignora que a sustentabilidade do sistema público de previdência é uma variável importante a ser considerada na formulação da política previdenciária do país. Tal preocupação, no entanto, não justifica a completa subordinação da política previdenciária a uma lógica estritamente economicista e fiscalista. Trata-se de uma estreiteza de visão preocupante sobre o papel da Previdência Social, pois o debate sobre a previdência envolve aspectos mais amplos de proteção ao trabalhador nos vários ciclos de sua vida. Além disso, a vinculação do INSS ao Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário certamente provocará problemas de articulação e coordenação entre a formulação e a operacionalização das políticas previdenciárias.

A MP nº 726 também sinalizou sérios riscos de enfraquecimento das políticas de assistência social, renda de cidadania, segurança alimentar e nutricional, de agricultura familiar e de reforma agrária, ao propor a fusão dos Ministérios do Desenvolvimento Social e do Desenvolvimento Agrário. Os núcleos centrais de sua atuação e os respectivos públicos-alvo não se confundem. As secretarias que integravam o MDA desenvolvem um conjunto de políticas voltadas para a reforma agrária e para o desenvolvimento da agricultura familiar, articulando ações que compreendem a regularização fundiária, a assistência técnica e extensão rural, o financiamento da produção familiar, estímulo à produção orgânica e agroecológica e à construção de redes de distribuição e comercialização dos produtos da agricultura familiar. O público envolvido nesses programas não se restringe à população de baixa renda, valendo-se de conceitos mais amplos, como tamanho da propriedade, estrutura produtiva, etc. Já o MDS tem seu âmbito de atuação voltado especificamente para as políticas de renda mínima, de assistência social e de combate à pobreza e extrema pobreza na cidade e no campo. Nesse caso, as estratégias de atuação institucional são direcionadas para um público de baixa renda, que se encontra em situação de vulnerabilidade social. Trata-se de lógicas de atuação completamente distintas, que não comportavam junção sob uma mesma estrutura, tal como proposto pelo governo interino de Michel Temer.

Por meio do Decreto nº 8.780, de 27 de maio de 2016, o vacilante governo Temer voltou atrás também nessa proposta e deslocou as secretarias ligadas à pauta agrária e à agricultura familiar para a Casa Civil. Deve-se registrar, no entanto, que tais medidas não parecem ter decorrido de uma avaliação crítica dos retrocessos representados pelas propostas contidas na MP nº 726. O modo irresponsável de lidar com estruturas que nos últimos anos melhoraram a qualidade de vida no campo brasileiro fica evidente nos atos administrativos utilizados para fazer estes remanejamentos: a extinção do MDA e a criação do MDSA foram feitos por Medida Provisória, ou seja, ato com força de Lei, enquanto que a criação da Secretaria Especial junto à Casa Civil foi feita por Decreto do vice-presidente, criando uma insegurança jurídica que coloca em dúvida todos os atos realizados pela secretaria e pelo ministério.

As investidas do governo interino chegaram a avançar, inclusive, sobre o Ministério da Cultura, com a proposta inicial de sua transformação em uma Secretaria Nacional de Cultura subalterna, integrante da estrutura do Ministério da Educação. Diante do evidente risco de retrocesso, formou-se uma ampla frente em defesa da manutenção do MinC, composta por artistas dos mais variados segmentos de expressão cultural, intelectuais, servidores do ministério e de entidades da sociedade civil em geral. A notável capacidade de mobilização desses setores, fez o governo interino se ver obrigado a retroceder em sua posição inicial, restaurando a estrutura anterior do Ministério da Cultura através da Medida Provisória nº 728.

O retrocesso institucional promovido por Michel Temer, no entanto, não se circunscreveu apenas às áreas sociais, tendo afetado de forma negativa outros setores importantes do governo, a exemplo da extinção da Controladoria-Geral da União, transformada no Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle, mais conhecido entre os servidores como MiniTraFiCo, nome um tanto sugestivo para um Ministério que se propunha ao combate “implacável” da corrupção. Além de a nova denominação representar uma perda de referência simbólica e de identidade em virtude da respeitabilidade nacional e internacional construída pela CGU nos últimos 13 anos, a desvinculação do órgão da estrutura da Presidência da República implicará uma diminuição de sua relevância institucional, tão necessária a um órgão responsável pelo controle e fiscalização de todo o Poder Executivo federal. De fato, a medida parece se alinhar com os piores receios de que o governo ilegítimo pretende abafar as operações de combate à corrupção, limitando sua atuação e controlando o desfecho dos processos.

As estruturas responsáveis pelas políticas de desenvolvimento do setor produtivo também sofreram mudanças que resultarão em problemas de coordenação e articulação, enfraquecendo as capacidades institucionais de um setor vital para o crescimento do país. Visando acomodar as ambições e interesses dos – à época – postulantes à titularidade dos Ministérios do Planejamento e das Relações Exteriores, o governo interino promoveu um significativo esvaziamento do antigo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, transformado no Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. O deslocamento do BNDES para a estrutura do Ministério do Planejamento provocará uma descoordenação entre os órgãos responsáveis pela formulação das políticas de desenvolvimento do setor produtivo – mantidos na estrutura do “Ministério da Indústria” – com o agente responsável pelo financiamento dos setores e projetos estratégicos definidos por aquela política.

No mesmo sentido, a transferência da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos – Apex Brasil para o Ministério de Relações Exteriores poderá ensejar um desalinhamento na necessária articulação entre as políticas de desenvolvimento, em especial do setor industrial, e a estratégia de inserção do país na economia mundial. Com essa mudança, o “Ministério da Indústria” perderá uma estrutura importante de política de comércio exterior, com impacto negativo em sua capacidade de coordenar de forma mais direta as medidas de incentivo ao setor industrial com a atuação da Apex Brasil na abertura de novos mercados e no adensamento das relações comerciais do país.

Nota-se que, sob o frágil argumento da necessidade de ajuste fiscal, o governo interino vem realizando o enfraquecimento de um conjunto relevante de estruturas institucionais que viabilizaram a formulação e implementação de políticas que tornaram o Brasil uma referência mundial de desenvolvimento social, de combate à fome e à pobreza extrema. O impacto fiscal desses reagrupamentos é nulo, mas são incontestáveis os efeitos perniciosos sobre as políticas exercidas por essas estruturas administrativas voltadas justamente às minorias e aos segmentos mais frágeis da população.

Sempre que questionado sobre quais as medidas mais importantes de seu governo, o ex-Presidente Lula costuma indicar a “inclusão do pobre no orçamento” como iniciativa principal. Com efeito, os governos do PT promoveram uma mudança no perfil do Estado brasileiro, constituído historicamente para atender majoritariamente aos interesses das classes dominantes. Foram criadas e fortalecidas estruturas institucionais de interlocução e de canalização de reivindicações dos setores sociais minoritários. É precisamente esses avanços institucionais que o governo interino pretende desconstruir.

Por essas razões, a pergunta que dá título a este artigo se torna absolutamente pertinente: qual Estado e para quem este “desgoverno” pretende “governar”?