Avaliação das medidas econômicas já anunciadas pelo governo interino

por De Olho no Golpe

Já nos primeiros dias do governo interino, a equipe econômica recém empossada procurou delinear os contornos da politica que seria implementada no próximo período. Além do conteúdo retoricamente alinhado com demandas tradicionais dos setores empresarial e financeiro, a rapidez e o número de anúncios demonstram a clara preocupação de ganhar a confiança dos agentes privados para dar sustentação politica à estratégia geral de perenização do governo interino.

Muitos desses anúncios, contudo, ao contrário da prática governamental usual, se referem meramente a medidas em elaboração, cujo detalhamento final, se vier a ocorrer, será apresentado à sociedade apenas nas próximas semanas. Além disso, cortes mais bruscos nas despesas com programas sociais não foram explicitados e medidas de elevação de tributos não foram anunciadas, evitando com isso debates mais acalorados na sociedade que poderiam afetar a viabilidade política do projeto. Tal comportamento denota uma gestão que oscila entre a afobação e a insegurança, ora antecipando de forma precipitada medidas que ainda não estão suficientemente maduras, para recorrentemente recuar a seguir, ora agindo como a “testar” a recepção do público, na ânsia por um sustentáculo externo que compense a falta de legitimidade do governo interino.

Por outro lado, chama a atenção que, em linhas gerais, a estratégia apresentada pela equipe econômica remonta às propostas conservadoras derrotadas nas urnas em 2014, em particular o retorno irrestrito das privatizações, a redução do investimento público como indutor do crescimento, a redução do papel do BNDES na promoção do desenvolvimento nacional e o fim do papel estratégico da Petrobras na exploração do Pré-Sal.

Abaixo, listamos as principais medidas com uma breve explicação, bem como uma avaliação crítica de seus principais impactos.

1. Revisão da meta fiscal

O governo interino solicitou ao Congresso Nacional a alteração na LDO deste ano para que a União possa ter como meta um déficit de até R$ 170,5 bilhões em 2016. Esse valor é bastante superior àquele proposto pelo governo Dilma por meio do PLN 1/2016, de R$ 96,7 bilhões, que havia sido duramente criticado pelos defensores da atual proposta. Os dois principais determinantes dessa diferença são a previsão de frustração adicional de receitas da ordem de R$ 37 bilhões e a previsão de aumento de despesas obrigatórias da ordem de R$ 28 bilhões.

A frustração de receitas se deve, sobretudo, à desconsideração de itens que dependem de aprovação legislativa (tais como a recriação da CPMF) e da receita derivada do programa de repatriação de ativos (em fase de implementação). Já o aumento das despesas obrigatórias possui uma explicação mais difusa que inclui, por exemplo, a negligência deliberada dos efeitos previstos de medidas de melhoria de gestão dos gastos com benefícios assistenciais e previdenciários já em curso1. Além disso, foram desconsideradas, no caso das despesas com pessoal e encargos sociais, a economia a ser gerada se fossem aprovados projetos já em tramitação no Senado e na Câmara que eliminam o beneficio do abono permanência ao servidor que adiar a aposentadoria e regulamentam a aplicação do teto remuneratório dos servidores públicos da União. Um indicativo claro, de menor empenho deste governo em aprová-los.

Ao elevar a meta de déficit por meio desses expedientes o governo interino procura alcançar três objetivos centrais. Por um lado, se desobriga do esforço legislativo e do desgaste junto à opinião pública (no caso da CPMF) e de grupos de interesse (como, por exemplo, no caso do teto remuneratório) resultante da tentativa de aprovação de alterações legais que elevam a receita e reduzem o gasto. Afinal, essas medidas deixam de ser urgentes para alcançar a meta de déficit maior. Por outro, permite que o aumento de receita com a repatriação de ativos e a redução de despesas com as medidas de melhoria de gestão, mesmo já sendo amplamente esperados em razão das ações tomadas pelo governo Dilma, sejam apresentados como realizações do novo governo. Finalmente, a meta maior possibilita que o esforço fiscal para atingí-la, realizado por meio da redução das despesas discricionárias – aquelas que o governo pode alterar sem mudança legal -, seja o mesmo que aquele contido na proposta apresentada pelo governo Dilma, contradizendo o discurso de que a atual equipe possui uma postura mais rigorosa no controle dos gastos públicos que a do governo democraticamente eleito. Ou seja, como mostra a figura 1 abaixo, a revisão da meta fiscal permite que o governo interino não reduza os gastos que poderia reduzir por conta própria, não precise fazer alterações legais complexas que melhorariam a situação fiscal a médio e longo prazo, e ainda anuncie a recuperação já esperada em certas rubricas de receitas e despesas como se fossem resultado de sua ação, e não do governo de Dilma Rousseff.

Além disto, a elevação da meta de déficit permitiu que, apesar da deterioração do quadro fiscal, fossem mantidos reajustes de salários negociados num outro contexto com distintas categorias de servidores, o que se contrapõe ao discurso da necessidade de redução do custo da máquina pública. Também é preciso destacar que se está tentando transferir parte do custo da perda de energia elétrica, verificado especialmente em distribuidoras da região Norte com tarifas fortemente defasadas, para o Tesouro e para consumidores de outras regiões, numa clara demonstração de populismo tarifário fortemente criticado por quem agora o pratica.

2. Introdução de um limite de gastos para a União

A proposta de fixação de um limite de gastos da União busca impedir qualquer crescimento real da despesa primária, restringindo a expansão desse tipo de gasto à inflação ocorrida de um ano para o outro. A proposta não impede expansões reais de grupos específicos de despesa, porém condiciona este tipo de expansão a reduções reais em outras áreas para que haja a necessária compensação. A introdução de tal limite requer modificações na Constituição e a compatibilização de outros dispositivos constitucionais e legais que determinam a expansão das despesas em ritmo superior ao implícito nessa regra, como nos casos de Saúde e Educação.

A estratégia de fixação de um limite de gastos já havia sido proposta pela equipe da Presidenta Dilma buscando a recuperação fiscal no médio prazo. No entanto, há duas diferenças centrais entre os dois casos. Em primeiro lugar, enquanto a proposta de limite da Presidenta Dilma incluía uma série de mecanismos que permitiam a utilização do gasto público, particularmente dos investimentos, como ferramenta de indução da economia em momentos de retração dos gastos privados para superar situações potenciais de crise econômica, nas declarações feitas até o momento pelo governo interino tal possibilidade inexiste na proposta e seus detalhes permanecem ainda obscuros.

Por outro lado, enquanto a proposta da equipe da Presidenta Dilma fixava o limite de gastos em percentual do PIB, a da equipe do governo interino fixa esse limite em termos do gasto verificado no ano anterior, apenas acrescido da taxa de inflação apurada. Com isso, se a primeira permitia que a despesa crescesse em linha com a expansão da economia, garantindo o aumento da capacidade de execução de políticas públicas em trajetória compatível com o da capacidade da economia do país em sustentá-las, a segunda impede qualquer crescimento real da despesa mesmo quando a economia crescer.

Em outras palavras, a proposta do governo interino não deixa que parte do crescimento do renda nacional seja empregada em políticas públicas destinadas a uma população que cresce no número e nas demandas que apresenta. Ao fazer isso, fixando os gastos públicos nos limites reais atuais, reduz-se progressivamente sua participação no produto nacional, afetando negativamente um mecanismo que, ao transferir renda e fornecer um conjunto de serviços a toda a população independentemente da situação social e econômica de cada indivíduo, possui um papel central no combate às injustiças históricas e na promoção de uma sociedade menos desigual. O efeito da proposta do governo interino pode ser visto na simulação apresentada no gráfico 1 abaixo: se adotada, e se o Brasil crescer pouco como nas décadas de 80 e 90, em 20 anos ela levaria o percentual de gastos públicos sobre o PIB, hoje em cerca de 40%, valor próximo ao verificado na média dos países desenvolvidos, a menos de 26%; já se o Brasil crescer mais, como nos anos 2000, esse percentual cairia a cerca de 19%, o que tornaria a participação dos gastos públicos no PIB brasileiro similar à verificada, por exemplo, no Paquistão.

A comparação dessa relação no Brasil com o que ocorre em outras regiões do mundo pode ser vista no gráfico 2. A proposta do governo interino, ao sugerir um caminho contrário ao perseguido pela maioria dos países, particularmente aqueles emergentes e em desenvolvimento, que têm aumentado, e não diminuído, a participação dos gastos públicos no PIB, tende a inviabilizar no Brasil o modelo de bem-estar social que está inscrito na Constituição e que é adotado pela ampla maioria dos países desenvolvidos. Em seu lugar, ela busca resgatar um modelo de sociedade em que os gastos públicos e a capacidade da ação estatal são baixos, modelo que vigorou no país na maior parte de sua história e vigora até hoje na maioria dos países onde a população permanece em situação de pobreza.

3. Transferência de recursos do BNDES para a União

A terceira linha de ação anunciada diz respeito à transferência de R$ 100 bilhões do caixa do BNDES para o Tesouro Nacional com o objetivo de reduzir o montante da dívida mobiliária federal. Embora os detalhes da medida não tenham sido completamente divulgados (o governo alega que ainda são necessários estudos jurídicos para a adequação da proposta à Lei de Responsabilidade Fiscal), parece-nos que a operação envolverá a antecipação dos pagamentos que o Banco deve ao Tesouro em virtude do programa de empréstimos que viabilizou o “funding” necessário às operações de crédito com taxas subsidiadas no âmbito dos programas do Banco, particularmente o Programa de Sustentação de Investimentos (PSI).

Com a redução do ritmo de contratações recentes, em parte devido ao menor apetite das empresas num contexto macroeconômico desfavorável, em parte devido à piora das condições ofertadas, o Banco conta hoje com um caixa confortável, o que motivou a equipe econômica a definir um repagamento imediato no valor de R$ 40 bilhões já neste ano. No entanto, a redução do funding disponível irá diminuir a capacidade do banco em financiar a economia real quando retornarem os investimentos, especialmente aqueles de longo prazo. Essa redução do tamanho do BNDES é, de fato, uma estratégia deliberada do governo provisório, que busca lhe atribuir uma imagem de esgotamento para abrir espaço à atuação de bancos privados com um custo de crédito mais elevado e restringir sua atuação principalmente ao financiamento de concessões e privatizações. Ao lado da redução do funding, outro vetor de redução do BNDES se encontra na alienação de parte de sua carteira de participações. Não foram dados detalhes sobre esta estratégia, mas vale ressaltar que ela pode equivaler, nas condições atuais de mercado extremante desfavoráveis, à venda de ativos na “bacia das almas”, causando importantes prejuízos à instituição. Mais uma vez, privilegia-se o conforto fiscal curto-prazista em detrimento da utilização mais abrangente do Banco como parte da estratégia de retomada e aceleração do crescimento, o que ficou nítido no discurso de posse da nova presidenta, Maria Silvia Marques, que pouco falou do papel do banco no desenvolvimento da indústria, da inovação e na correção de desigualdades sociais e regionais, e concentrou sua exposição em temas como concessões, privatizações, e até mesmo reforma da previdência.

4. Outras medidas

Além das três linhas de ação citadas, outras medidas da nova politica econômica, tais como a alteração nas regras para o funcionamento e aplicação de recursos de fundos de pensão e a reforma da previdência, foram também anunciadas. Entretanto, a despeito das promessas, da grande expectativa existente e da cobertura dos meios de comunicação amplamente favorável, esses anúncios ocorreram com tamanho grau de generalidade que não é possível uma análise mais detalhada sobre essas ações. Vários de seus aspectos fundamentais não estão, em absoluto, minimamente claros. Certamente, todavia, deverão ser objeto de debate e avaliação pela sociedade quando amadurecidas. De mais concreto até agora somente propôs-se a mudança na estratégia de condução da Petrobras, e a extinção do Fundo Soberano, cujo saldo atual é de apenas R$ 2 bilhões. Se levada a cabo, a medida eliminará um mecanismo importante para evitar variações violentas do valor da moeda (e, com ele, da inflação, da atividade econômica interna e do saldo em transações correntes) de um país que, como o Brasil, tem seus fluxos de divisas afetados decisivamente pela variação dos preços dos produtos que importa e exporta, preços estes que são determinados em mercados internacionais sobre os quais o Brasil possui, em geral, pouca influência. Além disso, é importante observar que no processo de extinção do Fundo o ritmo eventualmente acelerado da alienação das ações da carteira que reúne seu patrimônio pode levar à depreciação exagerada dos preços e ao consequente prejuízo aos cofres públicos.

Em relação à Petrobras, seu novo presidente indicado pelo governo provisório, Pedro Parente, apontou que defenderá que a empresa deixe de atuar como operadora única do Pré-Sal. Ainda não há detalhes sobre a proposta, mas os efeitos devem ser danosos para a cadeia local de fornecedores e para a gestão estratégica das reservas de petróleo, em um momento em que se justifica aguardar a recuperação de preços para aumentar o ritmo de exploração. Também deixou clara a disposição de aprofundar o processo de alienação de ativos, evitando a necessidade de aportes do Tesouro Nacional. E não bastasse tudo isto, uma questão bem mais complexa e fundamental para um país: sua soberania nacional. Principalmente em se tratando de reservas tão estratégicas.

A atenção aos detalhes ainda turvos das medidas já anunciadas e das que virão é crucial quando percebemos que, ao buscar o apoio político necessário para consolidar este Golpe, caminham na direção contrária à intenção repetidamente declarada de reequilibrar o orçamento público. Tais medidas aprofundam o drama fiscal do Brasil e aumentam a pressão por receitas extraordinárias que, ao que tudo indica, serão buscadas em um “urgente processo” de venda de ativos da União, reproduzindo a retórica e prática dos anos 90, desta vez sob o comando do PMDB e com o apoio do baixo clero político, e com a coordenação técnica de quadros do PSDB e DEM.


  1. Os esforços, bem como a economia prevista, estão consubstanciados na Nota Técnica n° 01/2015/SPPS/MPS de 25 de agosto de 2015.